segunda-feira, 28 de junho de 2010

Michel de Montaigne, o brigão

Sai da aula e fui em direção a parada de ônibus. No meio do caminho comprei um café, enquanto pensava o que diabos eu ia fazer pra tocar aquela maldita invenção de Bach, que mais parecia obra do demônio do que de um músico. Enquanto ia para a parada vi meu ônibus passando. Terceira vez no dia. Ótimo, teria que esperar mais um monte de tempo. Porque mesmo eu não comprei uma carteira de cigarro? Ah sim, eu estava tentando parar. Estava. Acabei conseguindo um com uma alma caridosa que estava por ali. Dizem que cigarro não se nega...
Por sorte não demorou demais. Minha barriga já começava uma revolução, pedindo comida desesperadamente. Entrei, passei pela roleta e sentei no banco da janela. Fechei os olhos por um momento. A rápida sequência de notas, uma atrás da outra, ainda se repetia na minha cabeça, enquanto meus dedos começavam a doer só de pensar naquilo. Quando minhas pálpebras se abriram novamente, vi que algumas pessoas estavam entrando no ônibus. Primeiramente passou pela roleta uma menina muito bonita. Logo atrás veio um cara de cabelinho espetado e cara de babaca. Óbvio que ele era namorado da bonitinha, que dúvida. O casal ainda sentou bem na poltrona da minha frente. Voltei a olhar para a janela, ignorando o resto do mundo.
Mais uma leva de passageiros em uma parada mais a frente. Dessa vez duas amigas e um careca de óculos com um livro de capa grossa na mão. Interessado em saber o que ele estava lendo, fiquei tentando olhar, mas ele fazia muitos movimentos com o braço. Sentou na poltrona do lado oposto de onde estava o casal. Consegui então ver o título em dourado na capa verde do livro. Era, pelo visto, um livro sobre Montaigne. Já tinha ouvido falar desse nome, mas não sabia exatamente quem era. De um jeito ou de outro o careca lia com um disfarçado interesse, como se procurasse algo além do livro. Voltei meu olhar para as amigas que agora estavam sentadas na frente do casal, duas poltronas a frente da minha. Fixei meu olhar no cabelo de uma delas e voltei a viajar, tentando imaginar Bach tocando uma peça num cravo ou algo assim. Como era dificil, porque apesar de conhecer o rosto dele de pinturas eu simplesmente não conseguia imaginar aqueles dedos gordos como salsichas correndo pelo instrumento com velocidade e precisão incomparáveis, de modo que nem se visse direito o que estava sendo feito. Alias, como eram estranhas aquelas perucas brancas que se usavam. Poxa, não seria mais fácil se...
-Tá olhando o que?
A voz desafiadora me despertou do transe de pensamentos infundados. Vi que quem tinha falado isso era o careca, que olhava fixamente (apesar dos óculos) para o namorado da menina bonitinha.
-Que o que?, respondeu o garoto. Apesar da estranheza de sua frase eu não consegui rir, já que estava tentando prestar atenção na discussão.
-Fica te achando malandro com esse cabelinho ai, disse o careca.
-E tu com isso?, disse o garoto, enquanto apontava para a cabeça de ovo do outro.
A namorada não falava nada, talvez pensando como o namorado era idiota por discutir com um careca no ônibus. Ou o estava achando o máximo.
-A gente não precisa aturar essa tua falta de educação!
O careca tentou voltar a ler, mas o garoto deu uma risadinha sarcástica que óbviamente o irritou. Fechou o livro e o botou na poltrona ao lado (pobre Montaigne, trocado por uma briga). O que um cara daquele tamanho queria com um pirralho daqueles? Era provavelmente o meu pensamento e o do resto dos passageiros. A tensão aumentava e o careca bufava. Por um momento a maldita invenção de Bach saiu da minha cabeça. Aquela cena era muito mais divertida.
O ônibus pareceu voltar ao normal aos poucos. Quando todos pensavam que a confusão tinha acabado, o homem se jogou para cima do garoto, derrubando o livro no chão. Ignorando a menina que finalmente começava a reagir com gritos de "para! Para com isso!", o careca desferia socos por ai, tentando acertar a cara dele. Rapidamente o cobrador segurou o homem pelos braços, jogando-o novamente para sua poltrona. Arrumou a sua camisa e só disse "a gente vai descer junto, só espera".
Minha parada era a próxima. Desci e comecei a caminhar de volta para a casa. Na minha mente um único pensamento: como eu ia fazer para tocar a maldita invenção de Bach?
Baseada em fatos verídicos... Pelo menos até uma parte.


Ouvindo Mudhoney-Touch Me I'm Sick

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