terça-feira, 22 de junho de 2010

O Escritor (parte III)

Última parte do conto. Espero que gostem.
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Os dias foram passando sem mais nenhuma surpresa. Ana notou certos hábitos do escritor como, por exemplo, o fato de sempre pedir torta de chocolate em dias chuvosos, enquanto no restante ele deixava a escolha para quem o servisse. Todas as terças-feiras usava um sapato marrom. Chegava sempre as quinze para as três da tarde, menos nas sextas-feiras, quando aparecia com dez minutos de atraso em relação aos outros dias. Sempre nos dias quinze e dezenove de cada mês o escritor usava um chapéu e entrava no café com o pé esquerdo. Nas quintas-feiras, assim que ele entrava, dava uma olhada ao redor e sentia um calafrio. Sempre as dezesseis horas, vinte e seis minutos e dezesseis segundos de cada dia ele batia o pé direito no chão. Todos os dias, durante meia-hora, ele inclinava a cabeça levemente para a direita e ficava marcando algumas palavras no texto com um lápis. Sempre bebia seu café como se fosse o último, apreciando cada gota. Nunca botava açucar na sua bebida. Nas segundas (o dia favorito de Ana), ele sempre entrava sorrindo. Anotava cada um desses detalhes em um bloco de notas, obcecada por descobrir cada vez mais peculiaridades sobre aquele estranho ser. Mas mesmo sabendo muito sobre ele, notou que não sabia nada. Quem era ele de fato? Qual o seu nome? O que ele escrevia com tanto afinco? As vezes até duvidava de sua capacidade literária, afinal de contas um homem tão regrado e cheio de manias não parece ter uma criatividade muito aguçada.
Com o tempo as excentricidades foram rareando, já tendo uma lista com mais de cinquenta manias. Começou a sentir falta de novidades, era tudo tão previsível. Queria descobrir algo novo, algo de realmente útil, algo que não fosse o tipo de gravata que ele usava em um certo dia ou a que horas ele pedia a segunda xícara de café. Queria algo concreto, algo que fizesse a diferença, algo que fizesse ela conhecer aquele homem de fato. Mas sabia que nunca ia chegar a lugar nenhum se apenas ficasse observando tudo de trás daquele balcão. O problema é que não tinha coragem, nunca tivera. Agora precisava disso.
Preparou-se durante semanas para o momento do embate. Estava se preparando para lutar contra si mesma e estava disposta a ganhar. Um dia ela simplesmente foi até lá e perguntou o que ele estava escrevendo. Nunca soube se foi movida por curiosidade ou algo mais intenso, só sabe que foi. Assim que ela fez a pergunta o escritor arregalou os olhos. Parecia incrédulo. Não entendia o porque da pergunta, ninguém nunca o fizera. Achava que essa pergunta nunca deveria ter sido feita, pois achava que a magia de tudo estava justamente no mistério. Ficaram olhando um para o outro durante alguns minutos, até que o escritor, sem dizer palavra, levantou-se e saiu de lá com o livro debaixo do braço. Ana estava atônita demais para dizer, pensar ou fazer qualquer coisa. Tinha feito alguma coisa errada? Falou algo que não deveria ter dito? Ela não encontrava resposta para nenhuma de suas perguntas, apenas sentia um imenso vazio. Então simplesmente pegou a xícara pela metade de café, o pratinho com a fatia de torta sem um pedaço e voltou para o seu posto. Não falou mais nada durante o resto do dia.
A cada dia que passava sofria mais e tinha o seu culpado: o maldito escritor. Porque ele foi aparecer na sua vida? Somente para faze-la sofrer. O que ela não imaginou é que talvez ela tivesse interpretado de maneira errada as atitudes dele. A raiva, apesar de libertadora, não nos deixa pensar com clareza.
Os meses foram passando e ela foi lentamente esquecendo de tudo. No começo foi difícil, mas dizem que o tempo cura tudo. Assim foi. Claro que ela nunca esqueceria de fato, afinal, apesar do pouco tempo de convívio, o escritor mudou sua vida de maneira impressionante... Só não gostava de admitir isso.
Foi então que em mais um daqueles dias chatos atrás daquele balcão que chegou algo que mudaria sua vida novamente e que a faria lembrar de tudo que acontecera. Um homem do correio surgiu na porta da cafeteria anunciando uma entrega para a senhorita Ana. Ela se surpreendeu e se identificou. Assinou um papel e pegou um embrulho vermelho em formato retangular. Abriu com todo cuidado, apesar da pressa e quando tirou o presente do embrulho reconheceu de imediato o livro que tanto tivera curiosidade de ler. Na capa de couro havia apenas uma coisa escrita, em letras douradas: "Retratos". Nenhum bilhete ou dedicatória, nada. Aquele dia quando voltou para casa devorou o livro em apenas um noite. Tratava-se de uma compilação de vários contos sobre pessoas de todos os tipos, todos contados de uma maneira apaixonada, como se essas pessoas fossem as coisas mais importantes do mundo. Ana estava maravilhada com o livro e se arrependeu profundamente de tudo que pensou sobre o escritor, ainda mais quando leu o último conto: Ana.

Um comentário:

Julia 'ins'pirando disse...

a parte III é a mais legal, acho.